Sabia-o de cor.


Sabia-o de cor. De todos os homens que lhe tinham passado na vida, uns a correr, outros em velocidade de cruzeiro, aquele era o único que já não lhe escondia segredos. Pelo contrário, guardava-os com ela.
Não havia nenhuma expressão órfã, cada mudança nas feições dele fazia-a adivinhar o redemoinho que lhe arrasava o peito ou o torpor doce de quem está em paz com os outros, mas principalmente consigo. Em ninguém mais surgia aquela covinha no lado direito da face, que ia aumentando enquanto ele passava do sorriso à gargalhada. Se Deus lhe roubasse os olhos da cara, ela usaria os das mãos. De entre 1000 homens, ela acharia aquele que agora sabia seu, bastando para isso percorrer-lhe o peito, que era seu cofre, os braços, que eram seu forte. Ninguém mais tinha aquele tom, a pele de ninguém cheirava como a dele.
Nenhum homem é só corpo e mais admirável que saber de memória as linhas do corpo, é saber os traços da alma. E ela sabia os dele. Sabia o que o comovia, o que o afundava num estado de exasperação profunda. Sabia o que o acalmava, sabia o efeito que as palavras bonitas e sinceras tinham no seu génio e usava-as como tempero naquela receita em que ambos se envolviam, se misturavam, se apimentavam e salgavam sem que nunca passassem do ponto de rebuçado.
Ela sabia-o de cor, corpo e alma, o que é físico e o que é mais que isso. Sabia tudo e não tinha medo do que sabia, das sombras que repousavam inquietas debaixo do sol da sua vida. Sabia que o amava, a cada dia aprendia novas formas de amor e ele era o melhor professor. O melhor professor para a aluna mais aplicada. O melhor ouvinte para uma apaniguada da confissão. O melhor amigo para a cultora mais atenta da semente da amizade. O melhor amante para a mulher mais amável. A peça em falta para o puzzle por completar. O cigarro para o café, a framboesa para o chocolate, a água para o deserto, o pão para a fome!
Sabia-o de cor mesmo no dia em que ele partiu. Para sempre. Ele partiu e, porque ela só o sabia a ele, deixou-a sem saber nada de si.
Ficaram a ignorância, o vazio, a perdição. Não é nada que se saiba, é tudo o que não se quer, ou devia, sentir.

14 de Julho de 2009
Adriana de Ascensão Pereira

[...]


Faltam-me palavras e eu não sei onde as procurar. Até já desisti dessa demanda porque, muitas vezes, só podemos encontrar quem, o que quer ser descoberto. Não é que o tédio seja tão forte que me deixe vazia, não é que a euforia seja desmesurada e que, com tanta alegria, nem conheça forma de a descrever. Talvez seja mais a apatia de ter tudo o que preciso, não tendo quem queria. Talvez sejam os dias de férias sem agenda, à espera da vontade súbita de devorar livros, do convite a que quero fugir ou da mensagem que não chega e que me desespera. Quem sabe não é o cansaço do costumeiro “mais do mesmo”: os planos, as expectativas e os enredos escritos na minha ideia que nunca se cumprem, nunca se superam e nunca conseguem actores que os representem. Nisto não sou pelos monólogos; prefiro dividir o estrelato com alguém, sem competir ou invejar. É como se apenas eu tivesse passado no casting para esta peça. Pior, é como se esta peça, de tão corriqueira, apenas despertasse desprezo junto dos actores que eu, enquanto encenadora, acharia perfeitos para o papel de me acompanharem na gargalhada e no pranto, de me emprestarem o ombro quando a dor fosse muita, de me darem o beijo terno que salva da morte as princesas (e as não-princesas) malfadadas.
Faltando-me as palavras, não me falta que dizer. Pudera eu contar tudo e talvez o aperto passasse, talvez me encontrasse… ou talvez quebrasse o encanto da angústia de quem espera, e sabe, que a resposta e as palavras que faltam vão aparecer depois, quando bem o quiserem, quando assim o entenderem.